31 maio 2006

MAIS 1 + 1 + 1 = MUITOS


1+1+1 = muitos, escultura de a. pedro correia, fibra de vidro, 2005

28 maio 2006

DESCARGAS BILIARES

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Há uma linha de descrença, de corrupção quase generalizada, de desmoronamento das instituições, que atravessa os países de expressão oficial portuguesa. A única excepção parece ser, actualmente, a república de Cabo Verde.
Em Timor-Leste residia, ainda, um capital de esperança que permitia imaginar um país muito jovem e unido em torno sua recente independência e da memória de décadas de ocupação estrangeira, cujas riquezas petrolíferas poderiam, finalmente, promover o desenvolvimento e o bem-estar das populações.
A esta distância, refugiados no nosso próprio desconhecimento da realidade, olhávamos para Timor como se de um processo exemplar de unidade, nascida durante os tempos de resistência, se tratasse.
Afinal essa unidade ( étnica, linguística, nacional, etc.) estava minada, não apenas pela extrema pobreza do país, mas por um conjunto de barreiras e de aspirações pessoais que desconhecíamos.
Não pretendo aqui discutir se existem, ou não, coincidências nestas coisas. Constato apenas que a linha negra que atinge o coração dos países que se expressam oficialmente em português, também se estende a Timor.
Ocorrem-me inúmeras perguntas relacionadas com o assunto, mas opto por esta, para terminar: Durante quanto tempo continuará Cabo Verde a afirmar-se como excepção a este panorama ensombrado?

ergui muros de palavras contra as lágrimas

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ergui muros de palavras contra as lágrimas.



lágrimas em mares onde as palavras
seriam barcos respirando, eu vi
a sorte dos ventos, a
partida adiada, a lua
amarrada ao porto.



ergui muros tijolo a tijolo de palavras.



dirias: tinhas os ouvidos cimentados.
respiro. a lua na ponta dos dedos
e já as palavras não servem.
diria: os teus primeiros olhos
atravessam-me como uma comoção violenta
e vou à fonte buscar água se queres,
beber sal, encher-me de maresia,
trazer o vento ao nosso suor.



ergui muros de palavras contra as lágrimas.



eram ocas de silêncio as palavras
e o silêncio devia habitar os barcos
lançados pelas tuas palavras em alto mar.
é nas noites em que a lua
se desenlaça dos meus braços que morro,
morro sempre um pouco por isso.


1981

de poesia sobrevivente 1978/1986
(poemas que escrevi há mais de vinte anos)

27 maio 2006

MAIS 1 + 1+ 1 = MUITOS


a. pedro correia
da série 1 + 1 + 1 = muitos
fibra de vidro
2005

25 maio 2006

LUANDINO VIEIRA II

Luandino Vieira anunciou ontem que recusa, por razões pessoais, o Prémio Camões. Ao não especificar os motivos que o levaram a tomar essa decisão, Luandino esvazia, de certo modo, a força da sua recusa. Porque nega um escritor um prémio com o prestígio do Camões? Porque não acredita em prémios? Porque tem uma posição, digamos, política que o impede de avalizar o prémio, aceitando-o? Por modéstia? Por imodéstia? Porque, entretanto, se distanciou da sua própria obra? Porque a realidade do país sobre o qual escreveu se afastou da realidade que a literatura de Luandino sonhava? Por desilusão? Em relação a quê? A quem?
Ao invocar, apenas, razões pessoais, Luandino retira importância à sua própria atitude. É pena. A recusa de um prémio pode, muitas vezes, adquirir uma carga simbólica importante e ajudar a demarcar as águas. Assim, sem mais, confunde-se somente com desinteresse e vontade de não inscrição.

24 maio 2006

ao mar

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ao mar
volta ao mar quando te perdes
a encontrar-te num tempo vasto e mutante
onde um esquecimento vago se dilui,
se vai diluindo no mar.



cantam-me as sereias dentro do sangue
lançando as redes, lembrando-me o sal.


1981

de poesia sobrevivente 1978/1986
(poemas que escrevi há mais de vinte anos)

23 maio 2006

MAIS DUAS DE 1 + 1 + 1 = MUITOS


a. pedro correia
da série 1 + 1 + 1 = muitos
fibra de vidro
2005

22 maio 2006

sem título

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I

de todos os homens que fui
de todos os destinos
que compuseram o meu destino
a memória de um sonho
fortemente persiste.



II

não é fácil falar do ouro ou
da inexplicada serpente
cuja raiz
toca a solidão de cada homem.


de poesia sobrevivente 1978/1986
(poemas que escrevi há mais de vinte anos)

21 maio 2006

QUEREIS VACAS? ENTÃO TOMAI LÁ UM GOLFINHO



golfinho intervencionado por a. pedro correia
fibra de vidro e madeira
2005

20 maio 2006

LUANDINO VIEIRA

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Lembro-me de ter quinze ou dezasseis anos quando li Luuanda, primeiro, e A Vida Verdadeira de Domingos Xavier, depois.
Lembro-me de, nessa altura, ter levado um murro no estômago. Afinal o português também pode ser isto?
Lembro-me de conhecer aquela música, lembro-me de ter ouvido aquelas palavras, lembro-me que eu havia vindo de Angola um, dois anos, antes. Tudo aquilo estava ainda nos meus ouvidos, o murro apanhou-me em cheio.
Afinal o português pode ser assim? Pode escrever-se assim escrevendo bem? Isto, assim, é bem, em português?
Luandino, inquestionávelmente, alargou as fronteiras do português enquanto língua "escrevível", enquanto matéria para construir uma outra literatura. Pese a ineludível datação dos seus livros, Luandino foi novo e foi pioneiro. Mia Couto é, por exemplo e apesar das evidentes diferenças, uma consequência disso.

PS: É muito natural que alguma inteligenzia nacional pareça desprezar a biografia e a obra de L.V.
Luandino não faz parte dos seus círculos.

DESCARGAS BILIARES

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os tempos não estão para poesias.

os dias correm para upgrades
downloads, para enriquecer,
gastar, consumir, consumir-se,
usar marcas, ostentar posses,
comprar carro, ter um barco,
para ter estatuto, dourar o canudo,
usar creme, comer marisco,
errar na gramática, opinar a esmo,
conquistar votos, ficar devoto,
comprar viagens organizadas, fazer carreira,
expor vaidades, mascarar ideias,
vender, produzir, vender antes de produzir,
ganhar mais, estar na moda,
andar de mota, ver imagens,
fazer peelings, renovar liftings,
construir buildings, entrar em chats,
ser virtual, armar-se aos cágados,
cagar no resto, não ter nada a ver
com isto.

os tempos nunca estão para poesias.
os poetas são sempre de outro tempo.

19 maio 2006

ESCULTURA


a. pedro correia
da série os pensadores fossilizados
2004

18 maio 2006

dois epitáfios

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EPITÁFIO DO ATEU CONVERTIDO
NO LEITO DE MORTE

aqui jaz um homem
que viveu como quis
e deus matou.



EPITÁFIO DO MORTO FINGIDO

aqui jaz jorge addi.
amou odiou morreu
mas sempre mentiu.


de poesia sobrevivente 1978/1986
( poemas que escrevi há mais de vinte anos )

OUTRA ESCULTURA EM MADEIRA


a. pedro correia
madeira de sorgo parcialmente pintada
2004

17 maio 2006

de mão a mão

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de mão a mão
imensa a fúria
funda a mansidão


de poesia sobrevivente 1978/1986
(poemas que escrevi há mais de vinte anos)

16 maio 2006

DESCARGAS BILIARES

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TÍTULOS

O comissário da exposição dirigiu-se ao superintendente para a área de exposições do município e disse-lhe:
- Temos aqui uns assuntos para ultimar. Ora veja...
É claro que, por essa altura, já o artista estava aprisionado.

ESCULTURA, SEMPRE ESCULTURA


a. pedro correia 2004
da série Estudo de Tons de Pele para Michael Jackson
pedra e cerâmica pintada a acrílico

passei a usar chapéu ao jantar

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passei a usar chapéu ao jantar
desde que te foste embora. acendo
sempre uma vela e falo
comigo.


é difícil ser português e ter corpo.
já o sabia, bem o sei agora.


é difícil ter sexo. felizmente
dou-me menos mal. desde que


te foste embora passei a usar chapéu.
ao jantar acendo sempre uma vela.


de poesia sobrevivente 1978/1986
(poemas que escrevi há mais de vinte anos)

15 maio 2006

APENAS UMA FRASE

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acordou mas não se reconhecia, quer dizer, reconhecia-se mas não se identificava, quer dizer, identificava-se mas não lhe apetecia ser esse, quer dizer, acordou e apetecia-lhe não ser.

14 maio 2006

OS PENSADORES FOSSILIZADOS

a. pedro correia
2004

A série "Os Pensadores fossilizados" é composta por três conjuntos escultóricos, totalizando 20 figuras. Eis uma panorâmica geral do conjunto I, constituído por doze peças de 30x30 cm cada. Voltarei a mostrá-los no Afinador de forma mais pormenorizada.

13 maio 2006

os dias que passam são rasos e

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os dias que passam são rasos e
estéreis.
o inverno arde rigoroso.
não chovem ainda peixes mas água
água líquida.



os corpos refugiam-se para dentro
circunflexos.
os peixes preparam o nascimento
na fertilidade destas chuvas.
os barcos encolhem-se no cais.



os meus dias seguem-se rasos e
estéreis.



de poesia sobrevivente 1978/1986
(poemas que escrevi há mais de vinte anos)

12 maio 2006

UM CONTO BREVE

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UMA FAMÍLIA FELIZ


O Sr. Silva viu-se transformado num porco e pensou logo que agora lhe ia ser difícil jogar às cartas. Primeiro, porque encontrar um parceiro disposto a sentar-se com ele à mesa e jogar de acordo com as regras parecia bastante improvável, segundo, porque segurar as cartas entre os dedos se tornara impossível.
Foi para a cama à hora habitual e adormeceu meditando no assunto.
No dia seguinte apercebeu-se de outra dificuldade. Como fazer os abastecimentos? Onde guardar as moedas já que a roupa não lhe servia? Se, quando era homem, se alimentava com costeletas de porco, recusava-se, agora, a comer costeletas de homem.
Passou o dia angustiado e foi para a cama à hora habitual meditando no assunto até adormecer.
No terceiro dia teve um pensamento terrível. E se o comessem? O Sr. Arsénio, seu dilecto vizinho, era dono do talho do bairro e, segundo ele, um porco é carne para desmanchar e vender ao quilo.
Foi para a cama à hora habitual com os nervos em franja. Recusou-se a dormir e teve medo de meditar.
De manhã fugiu da cidade e embrenhou-se no mato.
Ao princípio custou-lhe. Faltavam-lhe certas comodidades e sentia saudades da televisão. Depois habituou-se e passou a encarar a coisa com naturalidade.
Entretanto conheceu uma porca selvagem descendente de uma antiga linhagem de javalis e foi amor à primeira vista. Têm uns filhos lindos que são os orgulhosos descendentes de uma obscura gente do Minho e de uma antiga linhagem de javalis.
Educou-os o melhor que pôde e os bacorinhos vão-se tornando uns exemplares vistosos e, até, gostosos. Ás vezes tem problemas com a porca sua esposa e atribui-os ao facto de terem backgrounds culturais muito distintos.
Vai para a cama à hora habitual e já não medita. Agora só tem medo, muito medo, de acordar transformado em homem outra vez.

UMA ESCULTURA DE MADEIRA


a. pedro correia
madeira de amendoeira pintada
2004

11 maio 2006

longos uivos de mulher em bandos

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longos uivos de mulher em bandos
à noite no meu sangue.


eu carregando as minhas pedras
viajando no mar dentro delas
já não espero.


mas acordam-me por passos
os cães ladrando, cantando à lua.


1981


de poesia sobrevivente 1978/1986
(poemas que escrevi há mais de vinte anos)



10 maio 2006

MAIS ESCULTURA


a. pedro correia
Da série 1 + 1 + 1 = muitos
fibra de vidro 240x240x40 cm
2005

09 maio 2006

DESCARGAS BILIARES

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Existem sinais de que o país conseguirá equilibrar, a breve prazo, as suas contas externas. Se não acredita, atente neste exemplo: há muito que as mulheres portuguesas vão fazer abortos em Espanha. Agora vão ter filhos nas maternidades espanholas.
É o chamado acerto de contas.
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08 maio 2006

dá-me a tua lua peixe prata

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dá-me a tua lua peixe prata
seio vivo sono regaço
é teu afluente meu rio de sangue.


dá-me a lua na boca peixe
espada de prata
raio de calor apontado ao frio.


abre-me o corpo em rosa vasta
flor antiga e aquece-me


punhal de gelo na lonjura
largura das noites sós.

1981


de poesia sobrevivente 1978/1986
(poemas que escrevi há mais de vinte anos)

publicado na velhinha e extinta (?) liberatura
br.geocities.com/liberatura2

AGOSTINHO DA SILVA ( I e II )


AGOSTINHO DA SILVA


agostinho da silva
da série "Os Viajantes de Parede"
de a. pedro correia
pedra local e cerâmica - 2003

Duas peças actualmente presentes na exposição comemorativa do centenário do nascimento de Agostinho da Silva, integrada no festival CINEPORT, em Lagos.

UMA PINTURA DIGITAL


3 figuras
a. pedro correia
2005

POESIA SOBREVIVENTE - 1978/1986

Volta e meia, uma vez por outra, o Afinador de Sinos descerá à cave e regressará com um poema nas mãos. Convém abri-lo com cuidado e deixá-lo respirar. Têm todos mais de vinte anos, foram colhidos entre 1978 e 1986, e sobreviveram a longo estágio na gaveta e ao elevado risco de desaparecimento precoce.
Alguns, deixem-me ser imodesto, terão valor literário.
Os outros serão, talvez, pequenos retratos, punhados de tempo suspenso, de alguém entre os seus dezassete e vinte e cinco anos, e não servirão a mais do que à auto-contemplação rememorativa do seu autor.
A sua exposição nestas páginas é, no entanto, a consequência imediata de um acto muito simples: abrir a gaveta onde estiveram fechados mais de vinte anos.

era uma cidade ateada pelo branco

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era uma cidade ateada pelo branco.
tu praticavas a leveza de ser bela
e jovem e rejuvenescias a cada dia,
dir-se-ia. não se trata aqui de poesia.
suponhamos que voavas. voavas
e perdias-te em todas as direcções,
como as crianças. havia nisso alma,
quero dizer, havia nisso um ar, uma
candura, uma certa dose de malícia.
ateavas de brando a cidade ao passar
e praticavas a beleza de ser leve.

praticavas (e isso eu não podia saber)
a inesperada beleza de ser breve.



de poesia sobrevivente 1978/86
(poemas que escrevi há mais de vinte anos)

07 maio 2006

DIA DA MÃE


Sónia, mãe dos meus filhos

UMA ESCULTURA


A. Pedro Correia
2004
( moleano, mármore, aço inox, cerâmica )

DITOS POPULARES

O Andrézinho tem trinta e oito anos mas todos lhe chamam, ainda, Andrézinho.
O Andrézinho gosta muito de provérbios. Uma vez teve uma ideia. O Andrézinho matutou e matutou e matutou. Quer dizer, reflectiu, meditou, pesquisou, dirigiu o pensamento para.
Por sorte do Andrézinho o avô dele era dono de um palheiro; um palheiro verdadeiro, cheio de palha verdadeira. A avó do Andrézinho, por sorte, era dona de uma agulha.
O Andrézinho enfiou-se dentro do palheiro e uniu cada pedaço de palha a outro pedaço de palha e cada novo pedaço de palha a outro pedaço de palha e formou um único, longuíssimo, pedaço de palha.
O pai do Andrézinho, por pura sorte, era dono de um compridíssimo fio de nylon. O Andrézinho sentou-se no palheiro e passou o compridíssimo fio de nylon por dentro do longuíssimo fio de palha. O Andrézinho sabia como tornar a palha resistente.
Depois enfiou, com muito cuidado, a ponta do fio de palha no buraco da agulha da avó.
Bastava puxar a palha e ter paciência para desfazer os nós.
O Andrézinho tinha descoberto a maneira mais eficaz de encontrar uma agulha num palheiro.
Chamaram-lhe doido.
Calma aí, aguenta lá os cavalos, enquanto o pau vai e vem folgam as costas, grão a grão enche a galinha o papo, há mar e mar, não tomes a nuvem por Juno.
Doido, sim. Mas inteligente.