12 maio 2006

UM CONTO BREVE

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UMA FAMÍLIA FELIZ


O Sr. Silva viu-se transformado num porco e pensou logo que agora lhe ia ser difícil jogar às cartas. Primeiro, porque encontrar um parceiro disposto a sentar-se com ele à mesa e jogar de acordo com as regras parecia bastante improvável, segundo, porque segurar as cartas entre os dedos se tornara impossível.
Foi para a cama à hora habitual e adormeceu meditando no assunto.
No dia seguinte apercebeu-se de outra dificuldade. Como fazer os abastecimentos? Onde guardar as moedas já que a roupa não lhe servia? Se, quando era homem, se alimentava com costeletas de porco, recusava-se, agora, a comer costeletas de homem.
Passou o dia angustiado e foi para a cama à hora habitual meditando no assunto até adormecer.
No terceiro dia teve um pensamento terrível. E se o comessem? O Sr. Arsénio, seu dilecto vizinho, era dono do talho do bairro e, segundo ele, um porco é carne para desmanchar e vender ao quilo.
Foi para a cama à hora habitual com os nervos em franja. Recusou-se a dormir e teve medo de meditar.
De manhã fugiu da cidade e embrenhou-se no mato.
Ao princípio custou-lhe. Faltavam-lhe certas comodidades e sentia saudades da televisão. Depois habituou-se e passou a encarar a coisa com naturalidade.
Entretanto conheceu uma porca selvagem descendente de uma antiga linhagem de javalis e foi amor à primeira vista. Têm uns filhos lindos que são os orgulhosos descendentes de uma obscura gente do Minho e de uma antiga linhagem de javalis.
Educou-os o melhor que pôde e os bacorinhos vão-se tornando uns exemplares vistosos e, até, gostosos. Ás vezes tem problemas com a porca sua esposa e atribui-os ao facto de terem backgrounds culturais muito distintos.
Vai para a cama à hora habitual e já não medita. Agora só tem medo, muito medo, de acordar transformado em homem outra vez.

2 comentários:

ivamarle disse...

fantástico!!!absolutamente surrealista, que saudades da Liberatura...

Anónimo disse...

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