09 abril 2007

O LIVRO DOS BONS PRINCÍPOS (XLV)

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Havia, nesse tempo, um rio que atravessava a planície onde os meus bisavós construíram a sua casa. O rio ainda lá estava quando o meu avô nasceu, e ele passou a sua infância mergulhando nas suas águas, preparando armadilhas para peixes, caranguejos e camarões, inventando barcos e batalhas, sonhando com a descida dessa estrada de água que, algures, num lugar longínquo e desconhecido, ia desembocar no mar.
Na aldeia contava-se a história de dois jovens amantes, haver-se-iam passado duzentos anos, segundo alguns, trezentos, segundo outros, que se teriam amarrado um ao outro por grossas correntes e atirado juntos às águas, unindo-se para sempre através da morte. A lenda passara de boca em boca, de geração em geração, e fora sofrendo pequenas distorsões ao longo dos anos, gerando versões distintas, apesar de todas coincidirem no essencial: dois amantes muito jovens, ela muito bela e rica, ele muito feio e pobre, um amor sofrido e tormentoso e uma noite, uma única noite em que a sua paixão se consumara até que, ao romper da madrugada, nada mais lhes restava senão o rio. Depois disso, dizia-se, ouvia-se um canto triste e langoroso emergir das águas em noites de lua nova e havia ainda, passado tanto tempo, quem jurasse escutá-los e distinguir claramente a voz de cada um deles.
O meu avô teria perto de vinte anos quando o leito do rio foi desviado alguns quilómetros por causa de uns projectos de engenharia. No leito antigo sobraram alguns poços com água, pequenos lagos, zonas pantanosas e mal-cheirosas onde proliferavam os mosquitos. Foi num desses pântanos que se encontraram dois esqueletos abraçados, unidos por grossas correntes muito enferrujadas. Bernardo Soares, meu avô, passou o resto da sua vida a estudar esses ossos, a desvendar a sua história, a procurar localizar descentes dos seus familiares próximos, a consultar velhos papeis em arcas e cofres igualmente velhos, e escreveu um livro em que narra as suas conclusões. Infelizmente morreu antes de o dactilografar e publicar. É precisamente esse livro que eu, palavra por palavra, passo a transcrever:
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está hoje neste quiosque
e às terças

2 comentários:

Maria do Rosário Sousa Fardilha disse...

Que privilégio ter Bernardo Soares como avô. tens que nos contar mais pormenores sobre a sua vida. quem sabe se não foi essa descoberta no leito do rio o que provocou a sua escrita tão fragmentada, uma divagação sobre o passado, uma reflexão sobre o presente, e aquela capacidade de unir universos, dimensões.

Há algumas semanas uma equipa de arqueólogos encontrou um par de esqueletos abraçados. não me lembro quantos milhares de anos se conservaram assim. e agora estes "teus" amantes. Amores de outros tempos que nos comovem. e nos reencaminham para o que é mágico.

Eu visitei na última semana uma lagoa verde e outra azul separadas por uma ponte (as pontes às vezes separam). Dizem que foram criadas pelo choro de dois amantes condenados a viver distantes um do outro. Terá esse par fugido um dia para consumar o seu amor nas margens do rio da "tua" aldeia?

Tudo é possível.


PS: o link para o LBP está errado.

Anónimo disse...

Tu, Maria, sabes que tudo é possível.
Ainda bem que estás de volta, ainda que eu te deseje muitas viagens.