30 abril 2007

O LIVRO DOS BONS PRINCÍPIOS (L)

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Olga sorri para mim na fotografia que está sobre a secretária, junto ao computador, pisca-me o olho na sala de estar, no velho aparador que foi da sua avó, volta a sorrir-me dentro de uma moldura que ela própria fez e colocou em cima da minha mesa de cabeceira, no nosso quarto.
Olhar para ela faz-me sofrer, mas algo em mim me obriga a fazê-lo constantemente, não sei se algum dia ganharei coragem para afastar estas fotografias da minha vista, se elas alguma vez deixarão de me doer.
Recordo cada momento dos últimos dias - estávamos tão contentes, a alegria dela contagiava-me. Olga encontrara finalmente um produtor para o seu primeiro filme, a primeira longa-metragem a sério. Empenhara-se tanto! Vinha de uma reunião com a equipa de produção, estacionara o carro em frente à nossa casa, do lado oposto da rua. Ao atravessá-la foi colhida por um carro vermelho que vinha a grande velocidade. Olga foi projectada pelo ar, eu estava em casa e ouvi um grito, senti o ruído surdo da colisão. Espreitei pela janela e vi o corpo imóvel de Olga junto ao passeio. Corri como um louco em direcção a ela. O condutor não parou. Olga, a minha adorada Olga, não se mexia. Percebi logo que estava morta.
Olga olha para mim e sorri-me sobre a secretária, junto ao computador. O seu sorriso mata-me por dentro e eu choro com pena de mim, dos nossos sonhos desfeitos, dos filhos que planeávamos e que nunca teremos. Depois olho eu para ela e prometo-lhe, pela milésima vez, que não arrumarei as fotografias, ainda que o seu sorriso continue a matar-me por dentro, enquanto não encontrar o condutor do carro vermelho.
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continua a ser escrito aqui às segundas-feiras
pela mão de Maria do Rosário Fardilha

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